
A gritaria estridente ecoa longe, alvoroçando o espírito do lugar. Com apitos e chocalhos em riste, brincantes mascarados tomam as ruas, bagunçam a miudeza do cotidiano com o transe do corpo e entornam seu caldo vigoroso de cultura por onde passam, ao som da zabumba, do triângulo e do pandeiro. Contrários ao desencanto do mundo, os Caretas pedem passagem para invocar encantarias que nunca deixaram de existir no oco do sertão, encarnando o papel de mensageiros das estripulias fundadoras da vida.
Artífices de si, tendo os rostos encobertos por máscaras aterrorizantes confeccionadas com as próprias mãos, os “diabos alegres” trançam fios de crinas de animais, lascas de couro, sacos de algodão e tiras de pano para ir à desforra, ocupando ruas, praças e lugarejos de municípios e distritos do interior do Ceará com um só intuito: expiar os pecados em ritual festivo e vingarem-se do Judas traidor que será malhado, enforcado ou queimado em um grande teatro a céu aberto.
Portadores de alegria, os Caretas tocam seu chocalho, dançam e zombam de si e dos outros, assustam e coletam prendas e esmolas de porta em porta, podendo até cometer pequenos furtos. Dia e noite, durante toda a peregrinação, sem precisar de aviso prévio, são acolhidos e acoitados entre os sítios das comunidades rurais que abraçam a festa popular e se deixam contagiar pelo poder restaurador do espaço comunitário contido naquele caos momentâneo.
Se o ato de queimar o Judas está ligado à limpeza espiritual e ao apagamento das impurezas comunitárias, como deixou escrito o teatrólogo e pesquisador-encantado Oswald Barroso, não há nada o que perdoar na brincadeira dos Caretas. Ao contrário. Zelar por eles, com cuidado maternal, é celebrar o bem-viver coletivo, dando corda à imaginação comunitária que vem garantindo vida longa aos “palhaços, seres sobrenaturais, entes superiores, fantasmas risonhos, almas ancestrais, gênios monstruosos, brincalhões aterrorizantes, estranhos a buscar esmolas e espalhar o caos para renovar a ordem, elementos de ligação entre os vivos e os mortos”.